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O corpo como filosofia - Sentir, pensar e agir em Maat


A convite do Terça Afro, um poderoso espaço de conversa em roda e de cura da cidade de São Paulo, fomos convidados a estar com o corpo no mundo refletindo e agindo sobre nossos corpos pretos e seu substrato filosófico, deixamos por aqui um rastro dessas reflexões.


Essas duas entidades, corpo e filosofia, a um primeiro olhar se mostram díspares, distantes. Essa lacuna é avistada muito por conta do lugar em que cada uma esta. Pensar em filosofia remete a um acurado grau de maturação, um ar fresco sublime e refinado. Filosofar é um produto que se encontra em cabeças brancas iluminadas em recônditas salas cheias de livros. Já o corpo é tudo menos intelecto. Um subproduto que vagueia entre a margem do esplendor maquiado e bombado em sua estética e física até a extremidade oposta de um total descaso e abandono em ruas de grandes cidades.


O corpo Africano é a presença constante e testemunhal da vida. É nele que está grafada a fertilidade da crescente terra preta e as sementes que por aqui já brotaram e continuam a brotar. É neste corpo, em cada pequeno portal da consciência, que está a memória do desenvolvimento da experiência em corpo-barca-templo dessa nossa esfera terrena. É nele que habita cada tecnologia, cada magia, encantos e saberes. Foi e continua sendo este corpo o universo infinito, a fundação, a rocha, o primeiro monumento, o guardião dos segredos, o primeiro ventre, a primeira gota. Para nós que passamos pelo processo de negação de nossa humanidade na escravização e colonização, este mesmo corpo que migrou e povoou o mundo com pés livres foram violentados e acorrentados. Medito por aqui que o acorrentamento de nossos corpos no contexto da escravidão e colonização foi uma manifestação posterior a outros desejos de trancafiamentos. Para acorrentar nossos corpos foi preciso observar os rios que dão vazante, os rios que dão sentido a experiência e existência e que desaguam em nós. Aqui a imagem do rio representa o acúmulo de cada gota para se formar esse vasto rio, sendo a gota aquilo que nossos ancestrais exprimiram do seu exercício de viver. E nossos ancestrais são reinados, reino vegetal, mineral, animal. Levar pra longe esses corpos é tentativa de secar esses corpos. É verde sem sol, sem água. É verde sem verde, é preto sem preto.


Falando em filosofia, para os que imaginam que o exercício de se pensar a vida é um processo exclusivo da experiência Européia, tendo seu berço a Grécia, sugiro que revisitem nossos ancestrais. Renato Noguera e Katiuscia Ribeiro trazem ricas reflexões acerca desse importante movimento histórico. Nossos antigos já há milênios antes do milagre Grego exprimiam da vida essa divina gota. É essa gota que forma nossos rios e oceanos. São esses rios que acolhem nossos corpos, essa silenciosa sabedoria que preenche a sede do sentido de viver. Assim, nossos corpos são o que Amenemope aponta como o sentido da barca, sem um lugar pré estabelecido para se ancorar, mas uma barca que está em movimento, em constante equilíbrio nas ondulações da vida, navegando frente ao que cada dia se ensina e se aprende na ciência do tornar-se um feliz e sereno navegador. Contudo, para tornar-se um bom navegante, para que o acúmulo de nossas ações não destruam nosso barco é necessário guiar primeiro o coração, e a senhora que é guardiã desse portal, a guardadora dos segredos é Maat, a manifestação cósmica e equilibradora de nossos desejos e emoções, a expressão do divino atributo da retidão, verdade, justiça. Maat é quem protege e preenche nosso coração com a leveza dos bons pensamentos, ações, e destinos. Nosso exercício de “filosofar” é exercido pela retina do corpo consciência, corpo coração, corpo ação. Aqui nossa dicotomia corpo e filosofia se fundem numa unidade harmônica. E aqui também fica evidente que o exercício de lapidação e aperfeiçoamento se dá em diferentes esferas, pois falar em corpos como filosofia é conceber a existência de variados corpos habitando o mesmo corpo.


Nossa experiência de vida, como bem já apontou Laila Afrika, é holística. A vida só existe no encaixe de suas partes. A vida é integral, orgânica. Nosso corpo é o cosmos em unidade. O cosmos é nosso corpo em universo, e esse universo em verso recebe e exprime sentido, excelência, aprendizado e sabedoria. Conduzir a mente como único território capacitado a exprimir significados elevados acerca da vida é centralizar a experiência de viver na não vida. Viver é visceral, integral e inteiro. É permitir que a vida seja a maior professora e nosso corpo o mais sedento aluno. Isso me leva uma outra questão para aprofundamento em outro momento. Reduzir o ato filosófico ao exercício de sublimação racional é como reduzir a prática de Yoga ao tapete e suas posturas. Vivemos única e exclusivamente para aumentar nossa força espiritual e alcançar nossa felicidade. Enquanto houver sekhem (fluído vital/ar) circulando em nossos corpos é necessário estabilizar nossos variados corpos, como exemplo nosso corpo fisíco, mental e espiritual. É necessário estabilizar para que se possa experimentar a vida, prosperidade e saúde. Assim o ato de filosofar é contínuo e cotidiano, o balanço entre nosso estado de atenção/vigília e relaxamento/Intuição.


Com isso alargo minha margem e passo a pensar em meu terreno. Não mais exerço minha faculdade filosófica. Realmente filosofar é exercício laboratorial, separado, dissecado da unidade diversa. Talho e exprimo da vida o que está no revelado e oculto, sou colhedor de rekhet. O corpo é minha mente, minha mente é meu corpo. Minha pele é ligação neural, é arrepio e memória. Meu corpo é corda que me liga ao som de minhas antigas canções. Meu corpo é óleo, é cheiro, é banho de folha, é suor de dança. Minha filosofia é silêncio, riso de minha criança. Minha sala de estudo é céu e estrelas. Minhas saborosas gotas estão nas ladainhas do mato rasteiro, na dança da luz e do dia, no mato fervido em chá. Meu corpo/filosofia é trânsito e movimento. É afinamento de corda no som primordial. É nele que transita meu sentido e meu horizonte.


Um bom cozinheiro é o que cozinha o alimento com fartura e respeita cada elemento e suas combinações. O bom conselheiro é o primeiro que ouve o que ainda não foi dito. Enfim. Das infinitas atividades exercidas só há um lugar para expressar e executar, a vida. A criação da ciência é a tentativa de deslocar para fora de nós o que está dentro. É a tentativa de sermos espectadores onde nós somos parte criativa. É a tentativa de esvaziar nossa experiência histórica e nossos rios. É nos colocar na terra seca e nos fazer acreditar que essa é a realidade real e concreta. O exercício de Rekhet é o caminho para encontro de nossa real natureza, é a percepção, obediência e amabilidade as forças imperativas da vida. Nosso corpo integral é o pensamento acurado, palavras que saem de nosso coração justo e correto e ações que se materializam no espaço tempo. Não há distinção entre corpo e mente. Nosso corpo é unidade holística, nosso corpo é consciência em consciência, nosso corpo é rekhet, nosso corpo é templo, nosso corpo é casa, nosso corpo é guardião de toda nossa ancestralidade, nosso corpo é a permissão divina para ser o todo e absoluto. É assim que me sinto.

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